segunda-feira, 10 de agosto de 2009

...vazio de idéias...

Eu entendo perfeitamente a resistência de muitos quanto à arte contemporânea. Ela se mostra vazia uma consideravel quantidade de vezes. Mas às vezes ela até que é boa, o que não ajuda muito é o texto curatorial dela. E para ilustrar tal ponto, segue uma análise não da obra, mas do texto que "contextualiza" um trabalho que encontrei.

A obra se chama Éter, da artista Alice Shintani. Está expondo nesse momento na Galeria Virgílio. A obra parece interessante pela foto, e o texto que se coloca após ela também:

"Como olhamos o que olhamos?


Em que medida percebemos as pessoas, as coisas, o mundo, para além de um mero reflexo de nós mesmos? Buscamos de fato o estranhamento de um novo encontro ou procuramos o conforto do familiar? Agüentamos esse estranho ou necessitamos logo identificá-lo, rotulá-lo (e descartá-lo)?"

O texto segue. E segue, logo após ele, o "Texto-crítico" (as aspas já vieram do próprio site, quase ironicamente), e o texto finalmente:

"Artistas são endossados por exposições. Exposições são endossadas por textos-críticos. Textos-críticos são endossados por citações a pensadores. Pensadores são endossados por artistas:

“A obra de arte não é um instrumento de comunicação. Aliás, a arte não tem nada a ver com comunicação. Ela não contém a mínima informação. O que existe, ao contrário, é uma profunda afinidade entre obra de arte e ato de resistência.” [G. Deleuze]

“Mas o que significa resistir? É antes de tudo ter a força de des-criar o que existe, des-criar o real, ser mais forte do que o fato que aí está. Todo ato de criação é também um ato de pensamento, e um ato de pensamento é um ato criativo, pois o pensamento se define antes de tudo por sua capacidade de des-criar o real.” [G. Agamben]"
Eu acredito que foi a própria artista quem escreveu isso, e não um crítico efetivamente, mas enfim. A análise é válida de qualquer maneira (embora acredite que não seja tão necessária assim, com tamanha pérola que encontrei). Vamos da primeira parte:

"Artistas são endossados por exposições. Exposições são endossadas por textos-críticos. Textos-críticos são endossados por citações a pensadores. Pensadores são endossados por artistas".
O que se pretende aqui é um falso silogismo. Irônico de certa maneira, pelo menos ao meu ver. Digo isso pelo seguinte: endossar é demonstrar apoio a alguma coisa ou idéia. Assim, é sustentar essa idéia. Quem sustenta o artsita é a exposição. E a exposição só se encontra completa quando há um texto crítico para ela, senão, não é exposição (o que é uma grande balela). Textos críticos se constróem e encontram justificativas em citações a pensadores (para não dizer encher linguiça). E quem sustenta o pensador é justamente o artista, que cria a demanda por seus textos. Tudo claramente uma grande bobagem, e espero do fundo do coração que o intuito de tal sequência de idéias tenha sido com intuito humorístico... Mas o texto continua. Justamente com uma citação para que o conteúdo do trecho anterior seja endossado:

“A obra de arte não é um instrumento de comunicação. Aliás, a arte não tem nada a ver com comunicação. Ela não contém a mínima informação. O que existe, ao contrário, é uma profunda afinidade entre obra de arte e ato de resistência.” [G. Deleuze]"
Nada menos do que Deleuze. Não sei se o leitor vai me achar agora um tanto quanto atrevido, mas me parece nesse momento pelo menos óbvio que a citação não faz o menor sentido. Mesmo que deslocada de sua fonte, afirmar que uma obra de arte não é instrumento de comunicação é algo que deve causar ânsias a qualquer pensador descente. Antes de continuar, vai o trecho seguinte, para que a idéia esteja completa na hora de falarmos dela.

“Mas o que significa resistir? É antes de tudo ter a força de des-criar o que existe, des-criar o real, ser mais forte do que o fato que aí está. Todo ato de criação é também um ato de pensamento, e um ato de pensamento é um ato criativo, pois o pensamento se define antes de tudo por sua capacidade de des-criar o real.” [G. Agamben]"
Agora o vazio intelectual está simplesmente completo. Deleuze nos apresenta a idéia de que a obra de arte não é comunicativa, não é instrumento de comunicar, e nem contém informação alguma. Nego essa idéia do seguinte ponto: mesmo que pensemos que a obra de arte não é feita para o público, mas é por vontade espontânea do artista, é errado colocar que ela não é comunicativa pelo simples fato de ela ter-se materializado. Se um artista faz uma obra, é porque a julga com algum tipo de conteúdo digno de ser exposto a algum interlocutor, e assim o fazendo, sela o ciclo comunicativo que Deleuze nega.

Vendo ainda por outro ponto de vista, colocar que não há informação numa obra é selar o destino da arte como um todo a um nada. Se não há informação numa obra, o que são as descrições dos críticos de arte, e às vezes do próprio artista? A arte está baseada num código, mesmo que esse seja o idioleto do artista. E esse código semioticamente já se expõe como comunicativo, bastando que se sele a tríade "objeto-signo-interpretante". É meramente uma grande duma masturbação mental querer negar esses pontos tão evidentes.

E para tentar justificar a bobagem colocada anteriormente, o trecho seguinte fala o que é a resistência que Deleuze havia falado. E segue mais um silogismo, com um interessante adendo, que é a mania pós-moderna de colocar a "(des)construção" como a opção intelectualmente mais avançada (até o ponto de colocarem num livro de design contemporâneo um artigo mediocremente escrito que tratava justamente disso: a (des)construção da imagem. Só não entendi muito bem onde, pois o autor falou apenas de sua carreira). E talvez seja esse um dos problemas da arte contemporânea: ela é pouco propositiva, e por demais descontrutiva (sem os parênteses). Assim, somando isso com textos críticos como o aqui apresentado, sinto muito, mas a única coisa que vai conseguir mesmo é incompreensão...

Correção: Ao que me parece, falar bobagem não parte apenas de críticos de arte... Esse post fala de um texto crítico que não é um texto crítico, mas uma das obras da artista-base do post, Alice Shintani (ver, por favor, os comentários). Bom... O erro foi FEIO e ESDRÚXULO, e peço desculpas. Entendam então como um paralelo para o que eu quis dizer, ou mesmo como uma análise da obra "Texto-Crítico".

2 comentários:

Alice disse...

Olá, Eduardo,

Fico agradecida com seu interesse e análise sobre o "texto-crítico". Mas como você mesmo percebeu, trata-se de uma provocação sobre algumas práticas do circuito, como a "contratação" de textos-críticos(?) pelas próprias galerias, e a consequente leitura das obras a partir dessas "bulas", em geral incompreensíveis ao público e/ou vazias de propósito que não a de confirmar "teses" já pré-formatadas, em que a obra entra apenas para "ilustrar" determinadas idéias.

Gostaria de convidá-lo a visitar a mostra, sentir o contexto onde os trabalhos estão expostos e experimentar uma relação pessoal, direta com a proposta como um todo (e que inclui a também obra "texto-crítico").

Como olhamos o que olhamos?

Um abraço!

Alice.

Eduardo Ferreira disse...

Interessante, Alice! Acho que paguei um mico aqui! Não havia percebido que se tratava de uma obra, pois no site, que foi onde a vi, não havia pista alguma de que fosse realmente um obra...

Acho que colocarei uma pequena correção ao final do post.. Muito obrigado pela "dica"!